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quinta-feira, 30 de junho de 2011

A Observadora


Carol Gomez
A Observadora
Parte I
A esperança jovem se mostra viva

Nada mais estava como antes. As ruas em caos, famílias destruídas, vidas perdidas.
O sol quente de Cabul, a areia branca refletindo a luz, as ruínas de um bairro…
O antigo mercado não estava mais lá, minha irmã perguntava onde iriamos comprar naan, minha mãe lamentava o acontecido, já eu, o que poderia dizer?
O caos era contagioso, o pavor transpadecia no olhar de todos ao meu redor, o clima era extremamente tenso.


Caminhando pelas ruas vi de tudo. Crianças sozinhas e chorando ou com seus pais apavorados, mães chorando a perda dos filhos, animais agitados, e corpos jogados.
Mais bombas haviam sido jogadas sobre Cabul, já duravam cinco anos o dominio da União Soviética, mais tristeza e destruição. Onde iríamos parar?
Mas uma coisa ainda não estava mudada, ou pelo menos não por completa, e foi o que me fez acreditar que ainda havia esperança.
Os meninos continuavam com suas pipas, mesmo com toda a poeira e toda dificuldade.
Em seus rostos morenos e amigavéis, sorrisos fracos e inoscentes apareciam. Eles olhavam para o alto, visando suas pipas coloridas e fazendo-as subir cada vez mais alto, até serem apenas pontinhos coloridos na imensidão azul que era naquele dia o céu de Cabul.
O que seria daquelas crianças sem sua distração, sem sua ancôra? Eu não podia saber como era a vida delas, o que elas estavam sentindo, nem o que se passava por suas mentes. Não podia julgar nem tirar conclusões, mas de uma coisa eu tinha certeza, a situação era tão dificil para eles assim como era para mim, eles apenas estavam tentando fugir.
Os seus olhinhos brilhavam ao verem como conseguiam ir longe… sentia falta dessa confiaça, dessa alegria apesar de tudo, no olhar de minha irmã. Tão pequena e ingênua, e já fora submetida a tantas coisas… Aaminah era tão delicada para estar naquele lugar. Magra e de feições miúdas com olhinhos castanhos e brilhantes. Simpática e calma, sempre atenta ao que estava se passando redor…
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Kalil me esperava em frente a sua casa, ou o que restara dela, com a cabeça apoiada nos joelhos, e eu sabia que ele estava pensando em sua família. Ele era o único homem da casa, seu pai e sua mãe haviam morrido e ele agora vivia com uma tia e suas três irmãs, uma delas mais velha que ele. Nunca vira pessoa tão alegre como ele apesar de tudo, sempre muito positivo, ele era único.
Assim que escutou meus passos se aproximando levantou um pouco a cabeça, apenas o suficiente para olhar em meus olhos, e nada disse, mas eu sabia que aquele olhar queria dizer que ele já estava em seu limite, e embora eu nunca o tivera visto chorando, parecia que lágrimas eram o que estavam por vir. Não sabia o que falar, então apenas me sentei ao seu lado para lhe fazer companhia.
Ficamos em silêncio por um bom tempo, não era algo ruim. Eu sabia, nós sabiamos que aquilo era mais do que palavras. A sensação de conforto e amizade estavam ali presentes, e já eramos tão ligados que um gesto que para outra pessoa qualquer pudesse parecer simples, poderia significar uma frase para nós. Não era um código, apenas uma ligação muito forte.
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De repente o silêncio foi quebrado por uma explosão a algumas quadras de nós. Aquele som inconfundível, o qual todos os afegãos já estavam acostumados a indentificar rapidamente. Uma bomba.
“Ande, vamos Kalil. Levanta” dizia eu puxando seu braço em vão.
“Não adianta, cansei disso.” Sussurrou ele. “Não diga uma coisa dessas! Vamos logo, não pense nisso agora. Salve-se!!” insistia eu em vão.
Meu último esforço o levantou e com isso ele começou a arrastar os pés na direção contrária da fumaça.
“Se não quer pensar em si mesmo, pense na sua família! Pense em mim, que vou morrer junto com você!” eu parei na sua frente, fazendo com que ele olhasse em meus olhos. “Reaja! Esse não é você! Não quero que você fique aqui, e nem eu!” disse sacudindo seus ombros, chamando assim a devida atenção. Meus olhos estavam cheios d’água e minha garganta seca.
Abracei- me a ele, chorando, manchando sua camisa com minhas lágrimas e pedindo silenciosamente que alguma coisa intervisse naquela situação. Eu via pessoas correndo ao nosso redor, mas não escutava nenhum barulho, tudo passava em camêra lenta e sem som.
Quando levantei meus olhos, vi que ele olhava atordoado com o que acontecia ao seu redor. Finalmente!
Peguei sua mão e comecei a correr, podia senti-lo me acompanhando. Entramos em uma viela estreia e longa, e seguimos até o final onde viramos a direita em direção ao prédio abandonado.
O porão era fundo o bastante para que estivessemos pelo menos um pouco protegidos. Apesar de estar abandonado não representava nenhum perigo real, e só estava nesse estado porque o dono tinha conseguido fugir do país.
Não tinha me dado conta de que um silêncio horrível estava entre nós até que Kalil falou. “Me desculpe por hoje. Não sei no que estava pensando.” Dei um suspiro pesado. Eu sabia que não era culpa dele, não de verdade.
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Você pode pensar que era, mas de uma coisa tenho certeza, não era. Ele é uma pessoa tão boa que quando chega um ponto de estresse se desliga, não consegue mais raciocinar direito.
Gosto muito de observar as pessoas. O caráter, a maneira de agir, as mânias. Aprendo tanto com isso, que nem me dou conta de que as vezes é estranho. Chego a parecer obsecada. Mas é algo que me encanta.
E depois de tanto observar aprendi a compreender as pessoas do jeito que elas são. Umas mais reservadas, outras extrovertidas porém de caráter duvidoso…
Mas há alguns tipos em especial que me fascinam, e um desses tipos é o de Kalil, uma pessoa boa, capaz de se doar em benefício do outro sem nunca pensar em si mesmo. E nesses tempos difícies que estamos vivendo, são pessoas como essas que necessitam de ajuda. Elas sofrem mais pelo outro do que por si mesmo e com isso acabam se prejudicando.
“Kalil”disse colocando a mão em seu rosto “não se preocupe. Não foi sua culpa de jeito nenhum. Faz parte de quem você é.” O silêncio pairou novamente e por um segundo pensei que ele estava chorando.
“Mas então se ser eu significa te matar e me matar, não quero mais ser quem sou!” aquele sobressalto na voz dele me assustou. Não estava esperando. “Não diga uma dessas, Kalil” minha voz foi apenas um sussurro.
De repente ele girou nos calcanhares e me deu um abraço que quase me sufocou.”Eu já te disse que seu nome é perfeito, Naíma jan?”perguntou ele “não sei, mas eu não me importo que você diga de novo” na verdade, eu sabia. Ele já tinha dito. Delicada era o que meu nome queria dizer, e sempre que eu fazia alguma coisa que ele achava digna de elogio, ele falava do meu nome, se essa coisa tivesse algum sentido com o significado dele é, claro.
Parte II
Os desenhos do amanhecer

Mais uma noite tornava-se clara, mais um dia nascia.
O que me esperaria naquele dia? O que mais poderia acontecer?
As nuvens de poeira ainda não haviam se dissipado por completo, o ar ainda cheirava a tristeza e as cores eram mais sem cor do que nunca.
Hamshira, a mamãe vai demorar?” perguntou Aaminah assim que me viu arrastando os pés pela casa ainda com sono. “Desculpe. Não sei. Ela deve ter ido ao mercado. Não se preocupe.”
Ela se levantou da esteira onde estava brincando com sua bonequinha de pano e jogou seus braços ao redor da minha cintura, e eu alisei seus cabelos, fazendo-lhe um carinho…
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Como era de costume, peguei meu lápis e meu caderno, e obriguei minha mente a focar no desenho do céu, do sol, das casas e ruas de Cabul, e também na parte das bombas empilhadas. Sempre que acordava fazia isso, era um hábito que eu gostava de cultivar. Fazia-me sentir viva. Olhar a realidade de um jeito diferente, digo.
Dessa vez o título do desenho era “O sol perdido”. Por trás das montanhas de bombas, um raio de sol aparecia. Como se fosse uma colina de destruição, o monte de bombas escondia a fonte vital do mundo, escondendo consigo a felicidade. Mas não, eu ainda podia ver alegria em Cabul. Por isso os raios de sol. Eles ainda lutavam para ficarem brilhando no meio de tanta fumaça. Eles ainda persistiam. Sementes de vida que ainda brotavam naquele chão árido e escaldante.
Aaminah tinha razão quando dizia que o céu era cinza. E se os outros contestassem ela dizia que era assim que ela o via e que ninguém podia realmente contrariar a visão de uma pessoa.
Podemos comparar o céu de Cabul com uma página em branco que foi pintada de cinza, e a única interferência naquela imensidão de uma cor só, eram as pipas coloridas e pequenas, dançando calmamente pelo céu.
Minha mãe voltou de mãos vazias, praticamente. Trazia apenas um pequeno pedaço de naan e dois punhados de arroz em um saquinho de papel. Não seria suficiente! Nossa familia não era pequena. Tinha mais uma irmã, e ainda dividiamos a casa com mais cinco pessoas que já eram consideradas da família. Nenhuma delas trabalhava de verdade. Apenas alguns bicos quando possível, e mesmo assim, não havia dinheiro suficiente. Quando meu pai ainda estava em casa, não lutando contra os soviéticos, comiamos borani bademjan, beringela doce e salgada com iogurte, em vez de meia beringela por dia, como agora.
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O chão era mais seco debaixo da minha pele. Aquilo me lembraria de nunca mais tentar furtar alguma coisa.
Sim, pega roubando. Eu, que nunca tinha feito nada fora da lei tinha roubado um naan de uma barraca de uma ruazinha pouco movimentada. Ainda sentia o gosto da terra seca em minha lingua, e o rosto manchado pelo sangue do corte desferido pelo punhal do vendedor, que por sorte, só me acertara de raspão. Era longo, mas não profundo. A linha nascia dois dedos abaixo do olho direito e ia em diagonal até poucos cenítmetros antes do lóbulo de minha orelha. Também sentia a ardencia do chicote em meu ombro, quando ele desceu sobre minha pele com uma força descomunal, e a dor lacinante que me atingiu em seguida.
Caminhei devagar pelas ruas, sem saber o que fazer e para onde ir. O que eu iria dizer para minha mãe? Ela iria morrer de desgosto! Uma filha apanhada roubando! Não, ela não podia saber. Por fim decidi ir à casa de Kalil, provavelmente ele saberia o que fazer.
Quando cheguei lá, encontrei Aya, irmã mais nova dele, que estava pulando corda na frente da porta. Perguntei a ela se Kalil estava em casa.
“Não. Ele saiu, mas já volta. Pode entrar se quiser.” E continuou pulando.
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Eu sabia o que muita gente começava a pensar. O que eu fazia na casa de uma rapaz muitas vezes durante a semana? Eu não deveria ver que aquilo não era bom para minha reputação?
Afinal, eu tinha 15 anos e ele 17, já não éramos mais crianças, e toda amizade que tinhamos podia ser interpretada de outra forma. Eu me perguntava como que no meio de tanto caos, ainda havia espaço para fofoca, talvez fosse um modo das pessoas tentarem dar continuidade a sua vida como se nada tivesse acontecido.
Meus pensamentos foram interropidos pela voz que eu conhecia desde minha infância chamando meu nome.
Com aquele andar particular vi Kalil vindo em minha direção com passos ancisos- mais um detalhe que eu aprendera com minhas observações- seu sorriso branco parecia brilhar, mas logo desapareceu assim que viu meu rosto.
“O que aconteceu, Naíma?” perguntou ele assim que se sentou ao meu lado. Abaixei a cabeça, envergonhada “fui pega roubando”admiti. “O quê? Como assim, Naíma!” “Minha mãe não conseguiu comida suficiente. Eu tinha que fazer alguma coisa!” sussurrei “Roubar? Roubar era um opção? Você não podia ter vindo aqui e me pedido ajuda? Olhe o que fizeram em você! Sorte a sua que você não perdeu a mão!”
Você não sabe nem da metade, pensei comigo. Meu ombro ainda ardia, e eu podia sentir o sangue pulsando e escorrendo em meu ombro. “Como eles puderam fazer isso com seu lindo rosto?” disse ele. “Ele” corrigi. “O quê?”disse Kalil, “Era ele, não eles. Um único comerciante com um punhal e um…” parei com um tremor percorrendo-me a espinha “com um…” pressionou ele. “Com um… com um chicote”. O silêncio pairou alguns segundos que pareceram minutos para mim. “Ele  te chicoteou?” Kalil parecia lutar com as palavras, eu tinha a impressão de que a última tinha escorregado por entre seus lábios, ele não queria pensar, e muito menos chegar a pronunciá-la.  Assenti, não cheguei a perceber se ele notou o movimento, mas ele sabia o que tinha acontecido de qualquer jeito. “Onde” perguntou ele “No ombro direito” “eu poderia…” não fiquei sabendo o que ele iria dizer, mas através de seus olhos descobri que não queria saber.
“Vamos dar uma volta.” Disse levantando-me. “Naíma, olhe para você! Mal consegue erguer o tronco. O que vamos fazer!” eu tinha que concordar. Agora não conseguia me lembrar direito como tinha caminhado até a casa de Kalil. “Preciso de sua ajuda, o que vou dizer para minha mãe?” ele resmungou algo que eu não me esforcei para ouvir, sabia que não era boa coisa, “Que Allah te ajude, Naíma. Que Ele te ajude. O que eu posso fazer?” sussurrou ele. “Você tem que dizer que… que tropecei com uma faca na mão. Isso, quando estava cortando beringela para sua irmã. Por favor, Kalil  jan me ajude!”implorei. Ele deu um riso nervoso, e abanou a cabeça como se não quisesse aquilo, mas no fundo ele iria me ajudar.
 “Naíma!! Por Allah! O que aconteceu com seu rosto?”exclamou mammy. “Eu tropecei. Estava cortando beringela para Laila, uma das irmãs de Kalil. Me desculpe, mammy. Kalil me ajudou, estou bem.” Ela me olhou atravessado. Claro, eu sabia. Ela não gostava muito dele. Mas sabia que não podia impedir a amizade.

Parte III
A liberdade vem montada em tanques de guerra
e armada de fuzis…

15 de fevereiro de 1889
As ruas estavam lotadas de pessoas que se amontoavam para ver o desfile de retirada das tropas soviéticas e a chegada do novo governo. A Afganskaya voiná, a guerra afegã, estava terminada.
Paz, eram o que todos diziam. Agora a vida no Afeganistão seria boa, ou pelo menos melhor do que antes, era no que todos acreditavam.
Ainda se viam pedras e outras coisas jogadas contra os tanques, a revolta era imensa. Era estranho ver como algo bom podia chegar em tanques de guerra e carregando fuzis.
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Os Mujahidin, agora esses eram que mandavam. Foguetes eram lançados contra Cabul, e quando pensávamos que tudo estava acabado, o caos voltava a ativa.
Íamos fugir. Primeiro para o Paquistão, e depois, bom depois a gente decidia. Quando o sol beijasse o horizonte, seria a hora mais segura. Um caminhão iria esperar refugiados e leva-los para o Paquistão. Não seria eu a primeira e muito menos a última a fugir.
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Parte final
A caçadora de sorrisos
Fogo, fumaça, barulho. Mammy, Aaminah e Kalil. Pensamentos.
Água, névoa, silêncio. Mammy, Aaminah e Kalil. Pensamentos.
Tantos! Centenas, talvez até milhares de pensamentos. Rodeando-me, ocupando tudo que estava a minha volta. A concentração era difícil. Um clarão me fez acordar e tudo sumiu.
De repente, minha mente pescou um único pensamento que flutuava perdido e que sempre estivera presente:
Por trás de tantas dores havia um lado feliz no Afeganistão. No fundo dos corações, ainda sorria a esperança, pronta para libertar- se quando houvesse uma hesitação do desespero.
Era isso, era assim. Caminhei pelas areias que se estendiam sob meus pés. Mammy, Aaminah e Kalil. Abracei cada um, Kalil pareceu retribuir, embora ele não pudesse.
Choraram, mas sorriram depois. Pelo menos eu os vi sorrirem quando finalmente chegaram a um lugar seguro, quando Aaminah se casou, e Kalil foi seu padrinho, quando ela teve seu primeiro filho, enquanto Kalil conservava seu espírito jovem e alegre.
E eu sorria. A cada sorriso deles o meu, eterno por sua vez, crescia ainda mais.
E eu sorri, quando finalmente reencontrei Kalil. Estava jovem, sorrindente e amável como antes. E eu lhe disse “esperei por ti, sorrindo.”

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Esperei por ti, felicidade. E a busca e a espera não foram em vão.

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